sábado, 20 de outubro de 2012

Considerações sobre “Trabalhismo, Socialismo, Capitalismo”


Por Cássio Moreira

Em artigo anterior (http://sul21.com.br/jornal/2012/10/psb-e-a-continuacao-de-um-projeto-de-nacao-o-trabalhismo/), mencionei o fato de o PT ser o maior partido trabalhista do país na atualidade e a possibilidade do PSB continuar esse projeto reeditando a chamada Frente Brasil Popular [trabalhista] (em parceria com PDT e PCdoB, entre outros). Contudo, essa afirmação deve ser esclarecida. O PT não nasceu trabalhista, entretanto, seu governo atual é trabalhista, principalmente a partir da ascensão da presidenta Dilma Rousseff no núcleo do poder. Embora quase todas as reformas de base ainda se encontram na pauta do dia, várias ações executadas pelo governo, como o programa “Minha casa minha vida” (outro aproche para a Reforma Urbana), a expansão da Rede Federal e do PRONATEC (Programa Nacional de acesso ao Ensino Técnico e Emprego), o PAC, a própria redução da taxa de juro, entre outros, vão ao encontro dos postulados trabalhistas.

Cabe contextualizar e esclarecer o conceito de trabalhismo adotado aqui: o conceito do trabalhismo, tal como desenvolvido na Inglaterra, passou por transformações, adaptando-se à realidade e adquirindo características próprias.”, e teve como um de seus principais ideólogos, o sociólogo e político Alberto Pasqualini, que tinha como base os princípios do solidarismo cristão (democracia-cristã). Definia-se o trabalhismo como expressão equivalente a de capitalismo solidarista. Por esta expressão, tem-se que a ideologia trabalhista reconhece o capitalismo como sistema econômico, defendendo consequentemente a propriedade privada. Porém, a ideologia trabalhista defende uma intervenção do Estado na economia, de modo a corrigir os excessos do sistema capitalista e atingir uma forma mais equilibrada e humana do capitalismo, dando ênfase nas políticas públicas com objetivo de melhorar a condição de vida dos trabalhadores, o que seria atingindo baseado na “conciliação de classes”. O trabalhismo sustenta a prevalência do trabalho sobre o capital, buscando a sua convivência harmônica, bem como a superação das diferenças de classe, sem violência, através da melhor distribuição da riqueza e da promoção da justiça social.

Parafraseando Moniz Bandeira, o trabalhismo, foi a manifestação nacional, brasileira, do que na Europa foi a social-democracia após a guerra de 1914/1918, ou seja, uma corrente política que tratou de empreender reformas sociais dentro da moldura do sistema capitalista. Assim o governo do PT de Lula-Dilma estão a empreender, em outra etapa e em novas condições históricas, um caminho similar ao que Vargas, JK, Jango e o PTB trilharam, até o golpe militar 1964, buscando a retomada do desenvolvimento econômico nacional, mediante o entendimento entre parte do empresariado e a classe trabalhadora, e instrumentalizando a política externa. Mas as condições históricas são diferentes. Nada se reproduz do mesmo modo. O Brasil de 2012 não é o de 1954 nem o de 1964. É outro. É uma continuação, uma projeção, mas não é o mesmo de outrora. Por diversas vezes, Vargas e Jango foram acusados, na época, de serem submissos aos ditames de Washington. Inclusive San Tiago Dantas, na época, chegou a diferenciar a esquerda entre “positiva”, defensora das reformas, da “esquerda negativa”, que queria fazer a revolução. O espetáculo hoje se repete. A internacionalização da economia é imensamente maior do que na época de Vargas e de Goulart. Lula já encontrou o modelo neoliberal implantado. Não podia nem pode voltar atrás. Porém, parou as privatizações. E sua política financeira não poderia ser outra, porque manter o eqüilíbrio fiscal, não gastar mais do que se arrecada, é imprescindível a qualquer regime. Com inflação, moeda podre, não pode haver redistribuição de renda. Se Lula agisse de outro modo seu governo seria tragado pela crise econômica e financeira, com a fuga de capitais que se desencadearia.

A seguinte passagem de um dos discursos de Pasqualini é muito esclarecedora para definir sua essência:

“O trabalhismo não é, pois, necessariamente, um movimento socialista. Como vimos, o socialismo não é um fim, mas um meio, isto é, uma forma de organização econômica tendo em vista a eliminação da usura social.

Abstraindo das diferentes concepções socialistas - incompatíveis com os princípios cristãos quando têm caráter materialista - e considerando socialismo simplesmente a socialização dos meios de produção, de circulação e de troca, mediante uma planificação da economia, observamos que o sistema seria inexequível num país como o Brasil.

Devemos, pois, permanecer no sistema da iniciativa privada, isto é, no regime capitalista. Mas, se é conveniente que se mantenham em seus delineamentos gerais, a estrutura do regime capitalista, isso não significa que seja qualquer tipo de capitalismo que o trabalhismo possa admitir e defender. Em primeiro lugar, o trabalhismo brasileiro não poderia solidarizar-se com um capitalismo de caráter individualista e parasitário; em segundo lugar, há certas atividades e empreendimentos, certas riquezas e certas formas de poder econômico que devem ser socializados.

Nos sistemas individualistas, o capital visa exclusivamente o lucro, que poderá proporcionar a seus detentores possibilidades de consumo sem limites, à custa do produto social, isto é, do trabalho do proletariado. O trabalhismo não poderá admitir tal forma de capitalismo. Para o trabalhismo, o capital deve ser um conjunto de meios instrumentais ou aquisitivos, dirigidos e coordenados embora pela iniciativa e atividade privadas, tendo em vista o desenvolvimento da economia, e o bem-estar coletivo.

Consequentemente, o lucro não deverá ser o produto da exploração do trabalhador, mas, deduzida a justa remuneração do empresário, deverá constituir aquela parte do produto social que é invertida para a criação de novas riquezas e produção de bens.

O capital de caráter meramente especulativo e explorador não poderia encontrar guarida e tolerância no verdadeiro pensamento trabalhista. O capital é um conjunto de meios destinados à produção, à circulação e à troca. Uma fábrica é capital, uma estrada de ferro também o é. Não se pode ser contra o capital, o que seria absurdo. O capitalismo, porém, é uma relação de propriedade ou de exploração do capital. Se essa propriedade ou essa exploração são exercidas contra o interesse coletivo, o capitalismo é, evidentemente, um mal que deve ser combatido. Na constituição do capital há sempre uma parcela de usura do trabalho, e que é representada por aquela parte que está cristalizada no aparelhamento produtor.

Se alguém por exemplo, por meio de um empréstimo, constrói e instala uma fábrica, esse empréstimo terá que ser amortizado com os lucros do empreendimento. Ora, o lucro representa a não remuneração de uma parcela de trabalho e um sacrifício do consumidor. Para simplificar a ideia, suponhamos que um sapateiro tome a seu serviço um oficial. Se lhe pagasse, como salário, o que ele realmente produz, o dono da oficina não teria resultado algum. Isso significa que, para que o sapateiro tenha lucro, é necessário que o empregado ganhe menos do valor que realmente produz.

Com relação ao lucro que invertido, essa usura existirá em qualquer sistema. O capital é uma acumulação de lucro, isto é, de trabalho não remunerado. No sistema socialista de economia, o capital não se constitui através do lucro ou rendimento privado, mas através de taxação. Ora, a taxação produz idêntico efeito, pois equivale a uma redução do salário nominal. Se alguém, por exemplo, percebe mil cruzeiros mensais, mas tem que pagar duzentos cruzeiros de impostos, o salário real estará reduzido a oitocentos cruzeiros.

Se o Estado socialista pagasse ao trabalhador o valor integral do trabalho, não poderia haver inversões, isto é, não seria possível constituir o aparelhamento produtor e os demais meios correlatos, isto é, o capital. A parte do lucro, que é invertida, não representa uma injustiça social. Pode haver injustiça na parcela do lucro que é consumida pelo capitalista, sempre que o consumo exceda os limites razoáveis da remuneração devida à atividade empreendedora.

O problema, pois, não é o da existência ou supressão do lucro e sim o de sua aplicação. O capitalismo, portanto (isto é, a exploração privada dos meios de produção, circulação e troca) será injusto na medida em que proporcione, a alguns, possibilidades de consumo sem limites, à custa do produto social, isto é, do trabalho; será nocivo, na medida em que, para alcançar essas possibilidades, use de métodos e processos anti-sociais; será, por fim, inconveniente na medida em que tumultue o processo econômico, dando lugar às crises periódicas ou ciclos conjunturais, que são uma consequência natural da liberdade de iniciativa e da livre concorrência.

E de perguntar como será possível corrigir, praticamente, as injustiças e inconveniências
do regime capitalista. Poder-se-á responder que, se não é possível eliminá-las, será sempre possível atenuá-las. Taxar, por exemplo, os rendimentos, e aplicar o produto da taxação em inversões socialmente úteis será uma forma de canalizar o lucro e os rendimentos capitalistas para as suas verdadeiras finalidades. Taxar fortemente os artigos de luxo é, em geral, o supérfluo, e, com o produto da taxação custear serviços de assistência social, será outra forma de corrigir certas injustiças. Será uma maneira de obrigar os que podem adquirir o supérfluo a contribuir para resolver os problemas daqueles que não têm o necessário. E apenas isso que pretende o trabalhismo, isto é, tornar efetiva a solidariedade social.

Onde o sistema socialista de economia desse piores resultados que o capitalista, não haveria conveniência em substituir este por aquele. Suponhamos, por exemplo, que, numa fábrica, os operários ganhem, em média, x e o patrão lucre y. Com sua socialização, poder-se-á, sem dúvida, abolir o lucro, mas se a fábrica passar a ter uma administração pior, de modo que se encarecerá o custo da produção e do modo que a eliminação do lucro, nem aproveite ao operário nem ao consumidor, quais seriam as vantagens da socialização? Se a eliminação do lucro nem fizesse aumentar o salário do trabalhador, bem diminuísse o preço para o consumidor, a abolição do lucro seria perfeitamente inútil. A socialização só poderia dar resultados quando a administração daí empresa socializada pudesse ser mais eficiente do que a empresa privada. Para isso, porém, seria necessário um alto nível de educação social, que não existe ainda na maior parte dos homens.

A socialização integral dos meios de produção, no estado atual da humanidade, poderia trazer ainda outros inconvenientes, pois o Estado se tornaria todo-poderoso e seria difícil encontrar homens perfeitos para geri-lo. É certo que a tendência é para aumentar as funções do Estado, evoluindo da função simplesmente policial à função social e à função econômica. Essa evolução, porém, está condicionada a um maior grau de perfeição dos homens. Por outro lado, não será demais observar que, se a forma socialista da produção pode ser desaconselhada, não será para atender aos interesses capitalistas, mas para atender ao maior interesse da própria coletividade.

Será desnecessário esclarecer que há setores da economia onde a socialização ou a estatização se impõe. Não há hoje países onde impere o puro regime capitalista. Há países de economia exclusivamente socialista e países de economia mista”.


PASQUALINI, Alberto. Bases e Sugestões para uma política social. Porto Alegre, O Globo, 1948.

* Cássio Moreira é economista, doutor em Economia do Desenvolvimento (UFRGS) e professor do IFRS – Câmpus Porto Alegre. www.cassiomoreira.com.br